“Se eu fosse eu” e a potência da palavra
“Quando eu não sei onde guardei um papel importante e a procura revela-se inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu”, que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor sentir. E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser movida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua, porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei. Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo que é meu e confiaria o futuro ao futuro.
“Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando, porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.”
Clarice Lispector
Como Freud bem nos indicava, tudo aquilo que ainda não podemos explicar por nossa teoria, devemos buscar na arte. E que obra de arte são estes parágrafos de Clarice, não? Tão belos que podemos apreciá-lo com todos os sentidos, despertando em nós a tal espécie de pudor diante do que é grande demais.
Não creio que ela estivesse falando sobre a experiência de uma análise, nem tampouco que uma análise seja capaz de nos servir do tão almejado encontro sem falhas com nós mesmos. Mas o que aposto aqui é na potência da palavra, me servindo dos parágrafos da autora como ilustração para o processo que pode te despertar um tratamento analítico.
E se você fosse você? Ou, tentando aproximar a ideia do campo dos possíveis, e se você pudesse sustentar de maneira um pouco menos incômoda aquilo que lhe brilha os olhos? Se pudesse levar uma vida mais afinada a seus desejos, se pudesse amar da forma que acredita e buscar no amor o que de fato quer encontrar? E se no fim das contas fosse possível dar ao absurdo da vida algum sentido, por mais humilde que fosse? Clarice acertou ao dizer que cogitar tal hipótese talvez tenha te aberto um sorriso no canto da boca.
Pois a vida é mesmo cheia de paradoxos, de dores e de problemas que parecem insolúveis. Nos vemos vulneráveis das mais diversas maneiras, desde a família em que nascemos, o país onde vivemos, a natureza – que de repente nos surpreende com um vírus mortal, por exemplo. Como, então, forjar um sentido?
O tratamento analítico aposta no poder transformador das palavras. Aposta que o sujeito que se compromete e endereça a sua fala a alguém que possa escutá-la com ética, rigor e sensibilidade pode se servir do privilégio de descortinar a própria experiência, entender o lugar que ocupa no mundo de maneira ativa e finalmente desistir da ideia de ser perfeito, ser completo, ser um “eu”.
A partir da escuta sustento ser possível uma relação com o próprio desejo que possibilita, talvez, uma vida um pouco menos alienada e mais autêntica. Mas não posso dizer aonde levará a análise de cada um… talvez seja possível apenas ressaltar que pode vir a ser tão transformador que nos desperta um certo pudor… aquele mesmo que acabei de citar!